Antônia,
de apenas um ano, tinha uma missão audaciosa: salvar a irmã. O bebê de
cabelos encaracolados e bochechas fartas não faz ideia, mas concretizou,
há três dias, o ato de amor planejado pelos pais.
Os 260ml de
medula óssea da caçula deixaram a conta-gotas o recipiente similar a uma
bolsa de sangue, percorreram um fio transparente e penetraram o corpo
da irmã Ana Luiza, cinco anos, rumo à cura de uma aplasia medular que a
fez crescer em uma redoma por dois anos e 11 meses. O transplante
ocorreu às 15h8min de sexta- feira e terminou às 16h2min do mesmo dia,
sob a vigília de enfermeiros e médicos e dos pais Gerciani Cunha da
Costa, 39 anos, e Alex Gularte da Costa, 45.
O procedimento foi
realizado no mesmo quarto em que Ana está internada, no Centro de
Transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Para se preparar,
ela pegou o rímel da mãe escondido, passou protetor labial cor-de-rosa e
acomodou uma flor gigante na cabeça. Aos pés da cama, as bonecas, Aila,
Dora e Luiza. Queria tudo impecável. Assim que o transplante começou, a
mãe, sempre falante, ficou muda. O pai não tirava os olhos da menina,
emocionado. Ana Luiza permanecia estática, mexendo apenas os olhos.
– Queremos tirar uma foto contigo, Ana – disse Gerciani.
A menina a fitou contrariada.
– Claro, tiramos no dia que tu nasceste. Vamos fazer uma agora bem bonita – explicou a mãe.
– Tá bem, no dia em que eu renasci, né? – consentiu Ana.
Minutos antes da infusão da medula, Ana interrogou a médica:
–
Como que a medula sabe que tem de ir para o lugar certo, já que a gente
recebe na veia e sangue não tem olho nem pé para andar?
– Sangue
enxerga e anda até de skate. Corre e sabe onde ficar, é muito esperto –
rebateu Liane Daudt, chefe do Serviço de Hematologia Clínica e
Transplante de Medula Óssea do Clínicas.
Ao fim do procedimento, Gerciani foi até o quarto de Antônia, cinco andares acima.
– Deu tudo certo com a mana. Tu vais salvá-la – disse, enquanto a bebê se jogava em direção à mãe.
Fora
reações já esperadas, de vômito, prostração e dor de cabeça, Ana passa
bem. Até as 19h de ontem, o estado de saúde era estável. Antônia já teve
alta. Sem a irmã, embrião produzido em laboratório, Ana Luiza não
sobreviveria. A gestação de Antônia não seria programada pelos pais sem a
necessidade de um doador 100% compatível. No meio médico, o feito –
realizado em uma clínica de reprodução particular de Porto Alegre –,
pioneiro no Estado e segundo no país, é sinônimo de dilema e
controvérsia, pois muitos especialistas julgam antiético criar um ser
para salvar outro.
Para os Cunha, foi uma decisão baseada no
desespero de manter vivo um filho e na capacidade de dar amor “ao anjo”
que chegou para ampliar a família. A história foi tema de reportagem em
ZH em 4 de maio (veja acima, no detalhe).
A pega da medula,
jargão para definir a hora em que um novo sistema imunológico passa a
orquestrar o corpo do receptor e é retomada a produção das células do
sangue, tem um prazo de 21 dias para acontecer. Ana Luiza ainda poderá
enfrentar infecções e tem a chance de as células-tronco recebidas da
irmã não reconhecerem os órgãos do seu corpo. Mesmo as irmãs sendo
totalmente compatíveis, em 5% a 10% dos casos não ocorre a pega da
medula. Além disso, o risco de morte é de 15% e, em 70% dos
transplantados, ocorre a Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro, que é
quando o sistema imunológico novo não percebe os órgãos do corpo
receptor como próprios dele.
Quanto mais tempo houver de doença,
maiores são os riscos. Esse é o caso de Ana. Um dos motivos para que os
médicos que cuidavam do transplante fossem contrários à gravidez
programada.
Gerciani é professora de matemática. A teimosia da
filha em viver a fez deixar de crer em probabilidades. O primeiro
tratamento prometia 80% de certeza de que a medula acordaria. Nada. A
expectativa de 25% de chance de o irmão Alex Junior, 22 anos, ser
compatível não se confirmou. A chance de encontrar um doador compatível é
de um a cada 100 mil doadores cadastrados no banco de medulas. Se a mãe
tivesse engravidado espontaneamente, precisaria de 13 gestações. No
caso de Antônia, foram feitos dezenas de embriões até um ser compatível.
– Se tiver 1% de chance de dar certo, vamos transformá-la em 100% – confia a mãe.
Cadastro é esperança de 1,3 mil pacientes
A
aplasia medular severa de Ana Luiza consiste na falência da medula
óssea (a dela tem funcionamento de menos de 20%), o que a deixa sem os
principais elementos do sangue que combatem infecções. Quase três anos
se passaram desde o diagnóstico e a menina para quem um resfriado
poderia ser fatal resistiu fortemente. Mas uma semana antes da
internação para o transplante, Antônia contraiu um resfriado e o
transmitiu para Ana Luiza. A menina que não poderia ter mais do que
37,5°C de febre chegou aos 39,5ºC, antecipando a internação em início de
agosto.
Com o resultado dos exames comparados aos de um adulto
saudável, Antônia não ficou debilitada pela gripe. Em função do pouco
tamanho, a doação da medula ocorreu em duas etapas – uma em 18 de julho e
outra em 29 de agosto.
Ana já disse mais de uma vez que as
crianças são muito mais fortes do que os adultos. Tirando a palidez do
rosto, a altivez de Ana mascara a doença que lhe põe entre a vida e a
morte diariamente.
– Ela é praticamente um milagre. A totalidade
dos pacientes não resiste tanto tempo. O fato de ela ter ficado quase
dois anos sem febre e sem internar é realmente muito fora da
normalidade. A mãe dela tem toda a razão de desconfiar das
probabilidades – disse a médica Liane Daudt.
Enquanto a mãe
zelará pela saúde da Ana, o pai pediu licença do Exército, onde é
sargento, para cuidar da menor, com o auxílio de familiares. Em algumas
de suas visitas diárias ao hospital, Alex tem levado Antônia para ficar
com Gerciani no pátio. Ana mata a saudade da irmã por meio de vídeos e
fotos.
Esta história se mistura a de tantos outros pacientes que
precisam de uma medula nova para sobreviver, não fosse o detalhe de ter
um doador encomendado para a salvação. Aguardando pela chance de cura
através da medula, há hoje no Brasil 1,3 mil pacientes – sendo mais de
90 no Rio Grande do Sul.
– Se mais pessoas se cadastrassem, quem
sabe todo este sofrimento tivesse sido contornado no início. A parte boa
é que agora temos também a Antônia, que amamos demais – avaliou Alex, o
pai.
A previsão de internação é de mais 40 a 60 dias. Em casa,
os cuidados seguirão rigorosos. Os primeiros três meses são os mais
críticos. Ana ainda vai levar dois anos para frequentar a escola, quando
se espera que esteja curada. Esse é o maior sonho do pai.
– Nas
brincadeiras em casa, ela cita os nomes das amiguinhas de quando tinha
três anos e frequentava a escola. Ela só teve aquelas. Sinto que ela
está perdendo uma parte da infância. Agora está enclausurada para poder
voar por aí – disse Alex.
E os planos para quando ela voltar para casa?
–
Não sei nem mais receber visita. A família toda precisará de terapia,
mas o tratamento que eu achei mais adequado foi ver a Antônia e a Ana no
dia a dia, que elas estão lutando, Antonia se mantendo saudável e Ana
implorando para viver – crê Gerciani.
COMO SER UM DOADOR? |
-Para
ingressar no cadastro de medula óssea são retirados 10ml de sangue
(onde se identifica o HLA – espécie de “código de barras” de cada
pessoa), e preenche um formulário com dados pessoais. |
-Podem se tornar doadores voluntários pessoas entre 18 e 60 anos. |
-Os
dados do sangue e as informações pessoais ficam cadastradas no sitema
informatizado que realiza o cruzamento dos dados do paciente que
necessita de um transplante e fica disponível para doação até os 65
anos. |
-A necessidade dos pacientes
que aguardam por transplante é urgente, por isto. É importante manter
os dados do cadastro atualizados para que os doadores sejam facilmente
localizados. Mudanças podem ser informados pelo site
www.inca.gov.br/doador |
Fonte: Zero Hora: 01/09/2014.